Ubatuba, 6 de
Março de 2014.
Hoje foi minha
melhor noite de sono. Dormi feito uma jaca ou feito criança que nada tem a se
preocupar, você escolhe. Parece que pisquei e
acordei na mesma posição e nem o travesseiro mexi. A profundidade foi tamanha que tive uma noite
abarrotada de sonhos em sequência sendo que o último ficou com tintas frescas
na minha cabeça.
Sonhei que
depois de um longo processo decisório havia decidido postergar nossa mudança de
vida (para o mar) por mais dois a três anos e acabei por mudar de emprego
aceitando a oferta de um antigo chefe e retornando para antiga empresa onde me
“formei” e fiz carreira.
Ainda no
imaginário, coloquei meu paletó e gravata, fiz a barba, meti um cheiro e fui
para meu primeiro dia no novo-velho escritório, retornando para minha antiga
vida. Estava resignado, esta a melhor definição. Não estava feliz, mas sim
fazendo o que tinha que ser feito para o bem da nossa família (dando tempo ao
tempo). Mas para meu espanto, ao chegar na porta
do prédio, atrasado para minha apresentação.. olhei para meus pés e percebi que
estava descalço. De gravata, mas descalço. Acordei exatamente neste susto, na
tentativa de afugentar a angústia em achar sapatos e meias na altura do
campeonato.
Não sou
psicólogo e nem astrólogo, mas encarei tal sonho (não por acaso) como reflexo
natural da minha angústia atual, onde me vejo metido em um processo decisório emocional,
cheio de dúvidas e com uma boa dose de insegurança na escolha do melhor caminho
a seguir.
O sono de pedra
também teve seu motivo: vinha dormindo mal até então. Primeiro devido a forte
gripe, segundo pois o mar e o tempo muito nos atrapalharam nos últimos dias.
Estamos no último
dia do nosso primeiro carnaval a bordo. Viemos velejando da Ilhabela até Ilha
Grande e hoje estamos retornando. Amanhecemos na bela (exceção ao nome) enseada
do Flamengo em Ubatuba e hoje de tarde deixaremos nosso amado Lafitte em sua
poita na Ilhabela quando voltaremos para nosso cotidiano em São Paulo.
Subimos mais um
importante degrau em nosso aprendizado no mar: encaramos fortes chuvas, mar mexido, vento na cara por horas seguidas, nossa primeira vez em mar
aberto com toda molecada e, por fim, nossa primeira vez com risco real de acidente. Eu explico.
Na vinda, como o mar estava muito bagunçado e desconfortável, decidimos
desviar o rumo para um pernoite na praia de Picinguaba - enseada bem próxima da Ilha das Couves em Ubatuba - para alívio da nossa abalada tripulação. Uma boa decisão, a princípio. Mas
fomos surpreendidos às três da manhã por uma forte chuva que chegou assobiando alto com um vendaval, fazendo nossa âncora soltar e nosso sangue borbulhar.
Por sorte do
destino (ou aviso la de cima) acordei do nada com a claridade de um raio e meio desavisado levantei para
fechar as gaiutas preparando o barco pro aguaceiro. Dado a claridade de um
segundo raio, olhei por uma das gaiutas e para meu princípio de infarto vi que já
estávamos há poucos metros de uma grande traineira de pesca cheia de braços
quase a nos agarrar. O Lafitte havia se soltado dado vento forte e já
havíamos derivado uns vinte metros para trás e seguíamos acelerado em direção ao beijo da traineira.
No susto acordei
a Raquel e juntos saltamos para tentar segurar o cavalo xucro no meio da
tempestade. Ela correu para o guincho na proa e eu para o leme rapidamente
dando partida no motor. Máquinas avante !
Como um cabrito o Lafitte sacudiu
preso pelo cabresto. Os trinta metros de corrente no mar somente dificultavam nossa
manobra quase que impedindo de nos afastarmos do sufoco. O bichano rabeava para os lados e eu acelerava o motor na tentativa de reequilibrar
o prumo dando cara ao vento.
A pressão no rabo foi no limite quando o diabo do guincho travou na hora derradeira impedindo de tirarmos a âncora da água. Minha mulher gritava na proa, e eu gritava na popa. Ninguém entendia ninguém. Desisti de ir avante e passei a dar ré e aos trancos e barrancos – mas ainda com a âncora na água, arrastamos na marra o bichano contornando a traineira pela popa e derivando para longe no meio da baia escura.
A pressão no rabo foi no limite quando o diabo do guincho travou na hora derradeira impedindo de tirarmos a âncora da água. Minha mulher gritava na proa, e eu gritava na popa. Ninguém entendia ninguém. Desisti de ir avante e passei a dar ré e aos trancos e barrancos – mas ainda com a âncora na água, arrastamos na marra o bichano contornando a traineira pela popa e derivando para longe no meio da baia escura.
Mais isolados a frente trocamos de posição e Ela assumiu o leme e eu fui desvendar o travamento do guincho. Era o disjuntor que desarmou dado que a corrente havia se enrolado no guincho. Depois de resolvido o problema, refizemos a ancoragem tendo somente os clarões dos raios e o GPS como referência dado o volume de água que caia e escuridão impedindo que enxergássemos a frente.
Quase quarenta e cinco minutos
depois voltamos para cabine com olhos esbugalhados, encharcados e assustados. Nossos filhos acordaram na sequência: “Tá tudo bem, papai?”, Zé Cuca,
o mais velho, perguntou. “Tá sim, filho.. papai estava preparando o barco pra
chuva.. pode voltar a dormir”, tranquilizei. Mal sabia ele que os pais estavam
exaustos e semi-infartados.
Impossível
voltar a dormir depois disso, perdi a confiança no fundo, na unhada da âncora
e, principalmente na desgraça do
alarme de âncora (do ipad) que não disparou. Me mantive alerta até o amanhecer. E quando o dia clareou a bagunça já tinha acabado e com mar e tempo
mais calmo decidi dar partida no motor e seguir para o oceano rumo ao
nosso destino. Afinal, ”se não consigo dormir, vamos aproveitar o tempo para
seguir adiante no nosso rumo”, assim pensei.
De dia e mais tranquilos, debulhamos o
ocorrido relembrando cada momento, buscando repensar nosso comportamento e ações para quando formos desafiados novamente. E certamente, assim seremos - pois assim é a vida no mar: grandes prazeres, grande sustos e grandes aprendizados.
Vou resumir aqui
em poucas linhas as lições aprendidas:
- Alarme de âncora: obrigatório! Erramos ao armar o software do ipad. E temos também que ter um equipamento 100% confiável e não ficar na tentativa/erro experimentando a configuração.
- Erramos na ancoragem inicial: deveria ter testado a firmeza do fundo dando ré com o barco. Mas ao contrário, joguei ferro e como o bicho travou no vento fraco me dei por satisfeito. Grande e maior erro!
- Devemos ter todos itens de emergência (lanternas de cabeça, capas de chuva, facas e GPS) 100% a mão, e não ficar catando cavaco no meio da confusão.
- Guincho: o do Lafitte travou pois a caixa de âncora é pequena e quando a corrente volta com pressa ela embola dentro da caixa atingindo o topo e travando o guincho, exigindo atenção de quem manuseia o guincho a sempre organizar a corrente na volta evitando o embolo.
- E por fim, mas talvez a mais importante lição: cada um tem que ter um papel claro a bordo, sobretudo para saber o que fazer e como agir em momentos de emergência. Bem diferente do bate-cabeça que tive com a Raquel. ..mas valeu, a primeira expêriencia a gente nunca esquece.
Tirando os
sustos, o restante da viagem foi repeteco do ano novo.. excelente! ...com várias enseadas
bonitas, muito sol, atracagens tranquilas, churrascos, violão e muita diversão. De novo fomos ao Sítio Forte na Ilha Grande –
sendo que desta vez experimentamos a famosa lasanha de peixe da Telma na
Tapera (muito boa, por sinal). E novamente pernoitamos na Ilha do Cedro, uma das nossas ancoragens
preferidas, local perfeito para nosso churrasquinho debaixo da amendoeira.
E ontem, para finalizar uma bela viagem,
fomos escoltados por um bando de golfinhos, meio como uma mensagem divina para
termos calma e ficarmos tranquilos pois lá em cima tem gente com as mãos nos nossos ombros, bem alinhado com o que a Raquel tem tido pra mim ultimamente:
" ...calma, pois deus ta caprichando!" :)
" ...calma, pois deus ta caprichando!" :)